Necessário saber se simples desentendimento pode levar à exclusão.
Inegável que a necessária revolução jurisprudencial do direito societário vem avançando com teses arrojadas e garantistas da preservação da empresa. Ao abordar a possibilidade de dissolução parcial para exclusão de sócio devemos enfrentar a problemática afirmada por Kant que com seu preciosismo pontificou que "não terá validade o tratado de paz que tiver sido estabelecido com a velada reserva de ser usado como material para uma futura guerra". É de se interpretar à luz do princípio já definitivamente incorporado ao nosso texto legal da preservação de empresa, a norma do Código Civil do artigo 1.030 que permite, dentre outras hipóteses, a exclusão judicial de um sócio que tenha praticado ato compreendido como grave.
O problema da aplicação dessa norma é sem dúvida saber qual o limite da interpretação de ato grave, ou seja, até que ponto um simples desentendimento entre os sócios levaria a possibilidade de excluir alguém da sociedade. O questionamento mostra-se como um tormento para o magistrado e um engrandecimento do sentimento de rixa entre os sócios. Para chegarmos a essa conclusão basta refletirmos que desde o passado nossa construção sobre o que seria essa gravidade expressada pelo legislador infraconstitucional, passa perto de questões de convívio humano, permitindo-se que ao judiciário decida julgar dissolução parcial de sociedades quando os sócios expressarem um descontentamento, blindando-se para isso da chamada quebra da "affectio societatis". Essa expressão , significativa do sentimento de união de pessoas com o fim comum, vem sendo utilizada como escopo de pretensões vazias para exclusão de sócios discordantes dos rumos da sociedade pelo qual se desfaz parcialmente uma pessoa jurídica sem maiores justificativas.
Deste modo, é de se questionar, como construir um processo de revitalização da preservação da empresa e das bases organizacionais diante de um argumento tão vago e frágil que por vezes beira a mera alegação da maioria dos sócios e a ausência de investigação do judiciário no processo. É possível enxergar a fragilidade desta argumentação quando a própria jurisprudência lista como exemplos casos que levariam à exclusão de um sócio, como por exemplo, adultério da mulher de um dos sócios com o outro sócio, excessiva vigilância do sócio nos negócios sociais, desacordo sobre uma importante iniciativa etc.
Ora, diante de uma visível capitalização, em que a empresa (como atividade econômica organizada que representa) ganha o ar de um fenômeno econômico-jurídico, como podemos explicar para os aspirantes da Teoria da Empresa, teoria italiana que nós decidimos incorporar, que a construção da organização desta atividade pode ser facilmente quebrada por meras argumentações? A conclusão que se pode chegar é admitir, portanto, que a simples afirmação de quebra de affectio societatis seja motivadora de exclusão de sócio significa não prestar a devida atenção ao principio da preservação da empresa, hoje já positivado inclusive na lei falimentar.
O direito não pode dar ensejo a interpretações que esbarrem no próprio comportamento natural do ser humano. O dissenso e a discussão entre sócios são naturais e da essência do homem. Somente assim, com posições divergentes, é que se atingiu o progresso e desenvolvimento. Com as sociedades não podemos admitir o contrário. Se por um lado quer o legislador admitir o desenvolvimento econômico com a constituição de pessoas jurídicas fortes e lastreadas em bases de existência fundamentais, por outro, percebe-se que se o intérprete deixar se levar pela literalidade da norma e pela jurisprudência já ultrapassada estará matando qualquer possibilidade deste desenvolvimento econômico, ferindo até mesmo o direito da civilização em progredir.
Não se invoque o conflito de dois princípios constitucionais, quais sejam, o da livre associação e o da preservação da empresa. Entretanto, aqui é de se invocar a riqueza de detalhes da lei acionária das sociedades anônimas ao prever hipóteses exatas de responsabilidade de acionistas, como quando procede com abuso de voto, voto conflitante (art. 115 da Lei 6.404/76) ou quando não cumpre seu dever de integralizar o valor da sua participação (art. 107 da Lei 6.404/76) sem que fira, por isso a liberdade de se associar. Pelo contrário, cria um escopo de conduta para se atingir um fim social, benéfico para a coletividade. Percebe-se que a lei das companhias apesar de anterior ao não tão novo código civil, previu um desenvolvimento invejável, blindando a coletividade dos interesses particulares dos sócios. O desafio para aplicação análoga dessas esmiuçadas normas para as sociedades contratuais, tal como a limitada, está lançada e mais uma vez caberá ao judiciário não permitir que afirmações sem reais comprovações de gravidade para continuação dos negócios sociais possam resultar na denominada dissolução parcial desmedida. O legislador infraconstitucional, na redação do direito de exclusão limitou as hipóteses de inegável gravidade para a preservação da empresa e não simplesmente para garantir situações em que o majoritário manda e o minoritário obedece sob pena de se ver excluído.
As corretas e técnicas aplicações da possibilidade de exclusão dos sócios passam muito mais longe do que a expressão comezinha da quebra da affectio societatis que assola o judiciário, a exigir sim, uma análise de até quanto o que se afirma põe risco às atividades empresárias. Por vezes é necessário refletir sobre o pensamento expressado pelo escritor norte americano, Isaac Asimov : "a agressão é o último refúgio do incompetente". E a exclusão do sócio por meras alegações? Seria direito ou incompetência ?!
Scilio Faver é professor de direito empresarial e advogado associado ao escritório Vieira de Castro & Mansur Advogados