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A Constituição brasileira atual estabeleceu diversas fontes de recursos financeiros de modo a assegurar a autonomia dos entes federados. Uma das formas é a que institui competência tributária própria para cada unidade da federação. Nesse caso, cada ente subnacional poderá cobrar o valor que entender pertinente, de conformidade com os parâmetros estabelecidos nacionalmente em lei complementar. Cumpridos estes, é possível até mesmo implementar uma política de incentivos fiscais de modo a deixar de cobrar parte do imposto ou mesmo sua totalidade visando desenvolver uma região ou uma atividade econômica.
A outra forma de autonomia financeira acontece quando um ente federativo arrecada valores que devem ser distribuídos com os demais, de forma direta ou indireta. Neste caso, poderia o ente que arrecada renunciar a parcela de receita que deveria transferir?
O Supremo Tribunal Federal (STF), em recente decisão , entendeu que a parcela do imposto estadual (ICMS), a que se refere o artigo 158, IV, da Carta Magna, e que deveria se constituir como receita transferida aos municípios, pertence de pleno direito aos municípios. Ou seja, transformou o que era considerado como receita transferida em receita própria: "O repasse da quota constitucionalmente devida aos municípios não pode sujeitar-se à condição prevista em programa de benefício fiscal de âmbito estadual".
O Estado de Santa Catarina estabeleceu um programa de incentivos fiscais onde concedia até 100% de renúncia fiscal do ICMS. Este tributo, a despeito de ser de exclusiva competência estadual, tem 25% de sua arrecadação transferida diretamente aos municípios onde é arrecadado. Logo, quando o Estado estabeleceu a renúncia fiscal de todo o imposto, os municípios tiveram perda de arrecadação transferida.
No julgamento ficou assegurado aos entes subnacionais que a parcela de receita transferida a ele pertence, não sendo possível haver renúncia fiscal de valor que não pertence ao ente federado incumbido de arrecadar o tributo.
É curiosa a expressão usada pelo ministro Ricardo Lewandovski, que bem caracteriza a situação, ao mencionar que, ao assim proceder o ente incumbido de arrecadar estava nada mais fazendo do que "dar esmola com chapéu alheio".
A ministra Carmen Lúcia foi bastante clara ao assegurar que a "Federação brasileira se compõe exatamente com a garantia da autonomia municipal. Ora, se essa autonomia, que depende sempre dos recursos na forma estabelecida pela Constituição, pudesse deixar de ser atendida, evidentemente, estaríamos diante de um quebrantamento, mais do que de uma regra, de um princípio constitucional".
No mesmo diapasão se pronunciou o ministro Carlos Britto, ao vincular a arrecadação à autonomia federativa. "De fato, não se pode falar em autonomia municipal sem autonomia tributário-financeira, que, aliás, é suporte da autonomia político-administrativa de qualquer das atividades federativas. É certo que a Constituição, no artigo 158, inciso IV diz que ´pertencem aos municípios´, ou seja, se o tributo, ICMS, é de titularidade estadual - o Estado titulariza, cria, impõe, fiscaliza e arrecada o tributo -, uma parte da receita, por expressa designação constitucional, é dos municípios. (...). Há um condomínio federativo (...) no plano das receitas".
A conclusão do voto do ministro Celso de Mello foi contundente. "Concluo o meu voto, senhor presidente, reconhecendo que a repartição constitucional de receitas tributárias qualifica-se como um instrumento necessário e essencial à preservação da integridade da autonomia do município, compreendida esta em sua dimensão e projeção financeiras".
Assim, ficou assegurado por este julgamento que as receitas transferidas, de forma direta ou indireta, pertencem ao ente federativo a que se destinam, e não ao que as arrecada.
O aspecto curioso da questão é que esta decisão, verdadeiro leading case, decorreu de uma disputa entre Estado e município. Não há precedente que estabeleça parâmetro semelhante relacionando a União aos demais entes subnacionais. Isso é de fundamental importância, pois é usual haver renúncia fiscal por parte da União nos casos em que é necessária a implementação de política econômica anticíclica, tal como a que reduziu diversos tributos federais para reverter a crise econômica de 2008-2009. Havendo a redução dos tributos federais compartilhados, deveria ser preservada a parcela a ser transferida aos demais entes subnacionais? Seguindo o parâmetro da decisão do Supremo Tribunal Federal aqui comentada deveria ser preservada a parcela da receita a ser transferida; mas ainda não existe debate judicial definitivo a respeito. O fato é que o Supremo neste caso votou em favor do ente federativo menor, restringindo a possibilidade de o ente federativo maior realizar política econômico-fiscal com seus recursos, a fim de preservar a autonomia municipal. Dá a entender que este caso reverte o centralismo das últimas décadas, no que tange ao federalismo fiscal, mas, sem a definição relativa às relações da União com os demais entes, não se pode fazer uma afirmação dessa natureza. O que se pode afirmar é que a competência tributária de cada Estado para a concessão de incentivos fiscais foi drasticamente restringida a partir desta decisão do Supremo.
Fernando Facury Scaff é sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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