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Hipnose contábil, um desafio para a liberdade

É possível extrair da crônica Numa Cidade Distante, de Lya Luft, que é muito mais confortável ficar em nosso mundo e sob nossas verdades, onde tudo é previsível e relativamente tranqüilo, a enfrentar as (nossas) incertezas.

Autor: Marcelo Henrique da SilvaTags: contabilidade

É possível extrair da crônica Numa Cidade Distante, de Lya Luft, que é muito mais confortável ficar em nosso mundo e sob nossas verdades, onde tudo é previsível e relativamente tranqüilo, a enfrentar as (nossas) incertezas. Nossas verdades, previsíveis e tranqüilas, podem se apoiar em institutos que levaram dezenas e dezenas de anos para ser configurados. Entretanto, estes institutos podem ter sido, e ainda continuar a ser, úteis para determinados elementos, mas talvez não para todos, principalmente para elementos criados a partir de uma nova visão de determinado contexto.

Diria, então, que os critérios dos institutos lapidados durante gerações podem significar nossa vida previsível e tranqüila, ou seja, confortável; novos critérios a discutir fatos novos produzem, via de regra, recusa energética, pois interferem diretamente com a previsibilidade e a tranqüilidade de nossas verdades (ou vidas).

Desconsiderar institutos novos para contexto novo, pelo que se consolidou durante anos, é negar a evolução do conhecimento do homem. Ou melhor, é afirmar que tudo o que se construiu durante dezenas e dezenas de anos não podem ter seu perfil modificado, melhorado, adaptado, corrigido, ou mesmo legalmente alterado.

O desafio impregnado nas palavras pontuais da brilhante escritora é exatamente aquele de sair das amarras de sua vida previsível, buscando fundamentos nos enigmas propostos pelo novo tom da vida.

Enfrentado e superado os desafios, impostos pelo nosso próprio medo ao novo, é possível verificar que existe vida d’outro lado.

Durante anos (ou gerações?) estivemos algemados de pernas e pescoços, de tal maneira a permanecer no mesmo lugar e olhar em frente, sempre para um mesmo ponto, uma mesma Lei (imposta); estávamos incapacitados de voltar a cabeça, por causa dos grilhões. À frente, a Lei nº 6.404/76, a Lei das S/A (aplicável as demais empresas? costume? prática?). Pior, à frente não estava a Lei, propriamente dita, mas projeções desta, sombras. Ou, de outro modo, conhecimento do conhecimento.

Moldaram-nos! Habituaram-nos a determinados padrões, pensamentos e condutas. E o pior de tudo, gostamos. Preferimos o conforto do conhecido, do esperado, do previsível. Sedentários do pensar!

Caminhamos na proteção enfadonha e costumeira do Delegado, da Delegacia, do Fiscal. Habituamo-nos às “grades” do currículo escolar; a cumprir mandamentos; a ordenar nossas mentes num arquétipo de demonstrações contábeis; a seguir uma linha, única, sob pena de ser queimado, lançado na fogueira.

Convenceram-nos que não há vida (sem risco de multa, claro!) fora da Lei das S/A. Essa é a essência (sic), a realidade, a base pura chapa-branca! Governos autoritários, disfarçados de democratas.

Pode parecer que as ameaças vêm de um novo caminho a seguir, do lugar onde não há proteção das “autoridades”, do desconhecido. A vulnerabilidade maior, no entanto, está nos fundamentos impostos pelos “convictos”, nas crenças mais básicas que carregamos em nossa identidade profissional, que se questionadas ou desmontadas podem resultar na perda de nosso referencial e do nosso equilíbrio.

A evolução do conhecimento não é unicamente de crescimento e de extensão do saber, mas também de transformações, de rupturas, de passagem.

No passado, os sábios espirituais peregrinavam para exorcizar seus apegos. Largavam tudo e se tornavam andarilhos. Se lhe perguntassem para onde iam, diriam que a “um lugar livre de si, de suas certezas e convicções. Lugar onde pudessem ser alforriados de seu olhar viciado”.

Para o contador, qual o instrumento que o liberta dos grilhões, das imagens da Lei nº 6.404, impregnadas em seus ossos? É o direito, a lógica, a epistemologia do direito, a semiótica, a semântica, a lingüística, a axiologia, a história, a sociologia. Isso permite-lhe compreender o processo de geração do sentido que surge a partir do texto normativo. A norma jurídica.

Sair da constrição de hábitos seculares nos faz conhecer o alívio e a possibilidade de expansão do saber. E aí, muito além da proteção e do conforto de nossos costumes, podemos conhecer o que é essencial. Nosso direito. Nossa vida. Nova vida.

Não o texto da lei, mas as normas jurídicas, que não se confundem, modalizadas deonticamente nos functores permitido, proibido ou obrigatório.

Vale anotar a aula-lição do ministro Eros Grau, do STF, ao esclarecer que “o texto, preceito enunciado normativo é alográfico. Não se completa no sentido nele impresso pelo legislador.

A sua ‘completude’ [do texto] somente é realizada quando o sentido por ele expresso é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete. A interpretação do direito opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular: isto é, opera a sua inserção na vida. Aparecem de modo bem distinto o texto (enunciado, disposição) e a norma. Texto e norma não se identificam: o texto é o sinal lingüístico; a norma é o que revela, designa.

A Lei nº 11.638 é sinal lingüístico. Texto. Mas não há texto sem contexto, pois a compreensão da mensagem pressupõe necessariamente uma série de associações que poderíamos referir como lingüísticas e extralingüisticas. A caminho da norma jurídica.

Com sapiência, Paulo de Barros Carvalho nos brinda com a seguinte afirmação: as normas jurídicas – significações construídas a partir de textos positivados e estruturadas consoante a forma lógica dos juízos condicionais, compostos pela associação de duas ou mais proposições prescritivas.

Anote que para Barros Carvalho e Eros Grau, a norma jurídica não se constrói a partir de dicionários a tira colo, do encadeamento irracional de leis e de seus artigos (como num jogo de dominós), do interesse de autoridades e do e no poder, do costume, da prática, da teoria do medo, etc. É mais, muito mais, é interpretar o direito positivado compreendendo toda a ordem jurídica à luz dos princípios gerais e fundamentais; trata-se de dar “vida” aos textos, de modo que, por meio de uma correta interpretação, todo o direito atue como efetivo fator de transformação da realidade social, no dever-ser.

O empenho pelo entendimento é condição necessária para se pensar a norma jurídica.

Para Hans-Georg Gadamer, toda interpretação é fruto de uma fusão de horizontes. Não apenas de horizontes históricos que se encontram no presente para avançar em direção ao futuro, mas também de horizontes percebidos a partir da multiplicidade de olhares estendidos a partir de diferentes pontos de vista, mas direcionados para o mesmo fenômeno que se quer compreender, como é o caso do direito.

Observe-se que o art. 3º da Lei nº 11.638 prescreve que “aplicam-se” às sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações, “as disposições da Lei nº 6.404”. Dirá o incauto, o aferrado ao ligeiro e superficial, que “qualquer sociedade de grande porte se obriga as disposições da Lei nº 6.404”. Realmente, neste caso, é essa a prescrição. Mas não há outras? Será?

Ocorre que, como bem leciona o mestre Marco Aurélio Grecco, é imperativo que se estabeleça, aqui também, que, se a lei 11.638 manda aplicar as disposições da Lei nº 6.404 é porque não estão dentro do âmbito prescricional desta lei, até então. Se estivesse, não precisaria mandar aplicar!

O art. 3º da Lei nº 11.638 aponta o seguinte regramento: “a partir de agora” as sociedades de grande porte estão obrigadas a cumprir às disposições da Lei nº 6.404.

Se “a partir de agora” estão sujeitas à Lei nº 6.404, estavam submetidas a qual norma? Seria a Lei nº 1.083, de 22 de agosto de 1860 (segundo consta seria a primeira Lei das Sociedades Anônimas do Brasil)?

Não se pode admitir que “sempre estiveram sujeitas à Lei nº 6.404”. Admitir isso é inutilizar todo o art. 3º da Lei nº 11.638. Lembre-se, não estamos lendo um dicionário, nem estamos num jogo de dominó, ...

Se “desde sempre” as sociedades de grande porte estivessem obrigadas a se submeter à Lei nº 6.404, qual seria a finalidade daquele art. 3º? Pra que mandar aplicar algo que já seria obrigatório? Reaplicar o aplicável?

O sentido que se ajusta ao dispositivo é que, se a partir de agora mandou aplicar a Lei nº 6.404, é porque estas estavam sujeitas a outras normas jurídicas. Qual? De novo: seria a Lei nº 1.083, de 22 de agosto de 1860?

A resposta, indigesta pra uns, é o Código Civil Brasileiro, de 2002.

Ora, o Direito de Empresa, inserido no Código de 2002, encontra-se completamente articulado pela imputabilidade deôntica do dever-ser, qual seja, as sociedades empresárias são obrigadas a possuir contabilidade e suas demonstrações. É neste Código que as sociedades limitadas encontram a incidência jurídica da contabilidade, bastando, para isso, verificar que o art. 1.179 deste diploma prescreve que as sociedades empresárias são obrigadas a possuir contabilidade, e a levantar anualmente balanço patrimonial e o de resultado econômico.

Nosso Código Civil, enquanto norma jurídica válida, derrogou (não confundir com revogação) outras normas jurídicas. Por certo, ao se encadear leis e mais leis, como peças num jogo de dominó, é possível anotar que há leis não revogadas que dispõe sobre contabilidade. Mas não estamos jogando dominó, estamos convertidos num hermeneuta jurídico, comprometido com uma interpretação biófila (em oposição àquela necrófila); comprometido com a preservação, construção e reconstrução de sentido a fatos e normas jurídicas, orientados por valores.

Como bem orienta Sérgio Alves Gomes, “o direito só faz sentido se aquele que participa de sua elaboração for capaz de, ao mesmo tempo, atribuir-lhe sentido. Só é possível falar sobre o Direito porque existem os direitos”.

O intérprete não está só no mundo. Ele amplia o horizonte de sua compreensão na medida em que sua visão se encontra, se cruza, se funde com outras visões, com outros horizontes de diferentes autores, textos, contextos, lugares e tempos.

Infelizmente a Etologia, ou estudo do comportamento animal, revelou-nos o imprinting, que no plano das Universidades é catastrófico. O imprinting, na história de Konrad Lorenz, é a marca original irreversível que é impressa no cérebro.

Edgar Morin adverte que “na universidade, sofremos imprinting terríveis, sem que possamos, então, abandoná-los. Depois disso, o livre pensar acontecerá entre aqueles que sofreram menos o imprinting e que serão considerados como dissidentes ou discordantes”.

Ser dissidente ou discordante, pensar contrário aos grandes, pensar diferente do pensamento dos convictos, dos doutores da lei, dos eruditos, dos pesquisadores, dos normativistas..., é, num primeiro momento, meio caminho para a fogueira. Quem me acompanha?

O agora contador(a), nos anos e bancos escolares (ou mesmo após, para alguns), leu, estudou, interpretou ou mesmo duvidou de algum parágrafo da Lei das S/A?

Não se questiona quem leu, estudou e interpretou o arquétipo das demonstrações contábeis, segundo os ensinamentos do professor, observando-se tratar de conhecimento do conhecimento. Não se questiona quem passou com 9 na prova por apresentar “corretamente” o Balanço, de acordo com o Manual ...

A questão é, aprendemos a aprender? aprendemos a duvidar? aprendemos a construir nossas dúvidas e nossas certezas? ou aprendemos a repetir o conhecimento do conhecimento? a temer o delegado? a temer o temor?

Não se trata de anarquia. O que de propõe é uma consciência crítica capaz de perceber que toda linguagem exige interpretação para que possa fazer sentido.

A evolução do conhecimento científico não é unicamente de crescimento e de extensão do saber, mas também de transformações, de rupturas, de passagem de uma teoria para outra.

Mas não se engane, quanto maior o conhecimento alcançado, maior se torna a percepção da gigantesca ignorância inerente ao mais culto dos homens.

Mas veja, a consciência dessa ignorância, somada ao desejo de saber, engendra a busca do conhecimento em meio a todo tipo de dúvidas, de incertezas. Estas, embora insuperáveis em sua totalidade, contribuem para o avançar do homem na aventura de novas descobertas e criações que irão integrar o conjunto de tudo o que ele faz de significativo: seu mundo cultural.

Foi a sede de conhecimento, causada pela angústia diante do desconhecido, que levou o homem à reflexão, impulsionando-o a fundar os múltiplos caminhos do saber.

O art. 3º da Lei nº 11.638 produz muito mais do que o leitor incauto ou o intérprete aferrado ao ligeiro e superficial querem fazer crer.

Não precisaria, mas o art. 3º da Lei nº 11.638 confirma toda a eficácia jurídica do Código Civil Brasileiro. Repito, não precisava, mas pelo bem o fez.

Lembre-se que Lei nº 11.638 é sinal lingüístico. Ao hermeneuta cabe a transformação dos textos lingüísticos em normas. Isso, contudo, não significa que o intérprete, literalmente, crie a norma; o intérprete a expressa. “O produto da interpretação é a norma expressada como tal. Mas ela (a norma) preexiste, potencialmente, ao invólucro do texto, invólucro do enunciado.

Nos desafios interpretativos da Lei nº 11.638, adverte Sacha Calmon Navarro Coelho e Valter Lobato que “o método histórico não pode ser esquecido. Freqüentemente a doutrina lança-se sobre a lei no afã de interpretá-la, sem sequer conhecer a sua ‘exposição de motivos’, ao argumento de que feita a lei, doravante importa apenas examiná-la, desimportante a vontade dos seus autores. Nada é tão arrogante quanto essa prepotência interpretativa. Desprezam-se os valores, interesses e objetivos que informaram a feitura da lei. Sua genética não pode nem deve ser relegada pelo intérprete [...]. Não é com o evolver da história que os valores e as normas transmutam?”.

Se os métodos gramatical e sistêmico não deram conta do recado, no histórico não existem dúvidas sobre a extensão jurídica da Lei nº 11.638: o NPC – Novo Padrão Contábil é aplicável apenas as S/A e aquelas outras de grande porte. E só!

Na tramitação do Projeto de Lei, da Lei nº 11.638, o Deputado Armando Monteiro já consignava: “Deve-se registrar que a revisão ampla de nossa legislação societária, iniciada pela Lei 10.303, de 31 de outubro de 2001, teve como linha mestra a preocupação com o fortalecimento do mercado de capitais de nosso País, como instrumento viabilizador do auto-financiamento das empresas. Este projeto de Lei segue, exatamente, naquela direção. Nesse sentido, com a adoção de normas contábeis compatíveis com os melhores padrões internacionais, buscou-se conferir maior proteção aos acionistas minoritários, com vistas a atrair entrada de novos recursos e permitir o desenvolvimento seguro do mercado de capitais”.

Com os insumos acima declinados fica claro e evidente que a Lei nº 11.638 é adotada para o fortalecimento do mercado de capitais de nosso País, para as S/A, para as empresas de grande porte.

Lembremo-nos da advertência de Sacha Calmon e Valter Lobato, para quem, na interpretação da norma jurídica, desprezar os valores, interesses e objetivos que informaram a feitura da lei, é ser “arrogante e prepotente”.

O DNA da Lei nº 11.638 é de S/A e de empresa de grande porte.

Destarte, com tais diretrizes devemos reconhecer, e conhecer, que a Lei nº 11.638 aplica-se exclusivamente às S/A e empresas de grande porte, essa é sua genética, essa é sua prescrição legal. Os métodos de interpretação gramatical, sistêmico e histórico descrevem essa essência.

As demais empresas estão submetidas ao Código Civil Brasileiro, considerando que o Direito é uno e único; considerando a virtuosidade e legalidade das derrogações; considerando o respeito aos pressupostos jurídicos.

Temos um horizonte! Saímos da caverna! Escapamos dos grilhões da Lei das S/A! Da interpretação chapa branca! Somos homens libertos! Nossos horizontes...

Aquele que não tem horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que está mais próximo (a segurança do costume; do delegado; da delegacia). Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno.

Mas..., questionam aqueles que chegaram até aqui (ufa!), ... e as Resoluções...?

Para a questão, recorro-me a Spinoza ao descrever que o fim do governo (Conselho) não é transformar os homens de seres racionais em animais irracionais ou títeres, mas sim habituá-los a desenvolverem a mente e a usarem ilimitadamente sua inteligência.

Temos, então, a verdadeira essência sobre a forma, lembrando que o “essencial é invisível para os olhos” (Antoine de Saint-exupéry).


Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.
 

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Atualizado em: 20/12/2024 20:59